Atletas transgênero e intersexo ainda enfrentam incertezas em grandes eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos de Paris. Um exemplo disso é a boxeadora argelina Imane Khelif, que venceu a luta contra a italiana Angela Carini nesta quinta-feira (1º). Carini abandonou o combate após 46 segundos e esclareceu que a desistência não teve relação com a situação de sua adversária. No entanto, surgiram fake news alegando que Carini teria deixado a luta por Khelif ser transgênero.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) emitiu uma nota afirmando que “toda pessoa tem o direito de praticar esportes sem discriminação” e destacou que “as duas atletas competem há muitos anos em eventos internacionais de boxe na categoria feminina”, classificando as publicações que questionam a legitimidade de Khelif como “enganosas”.

Foto: Reuters/Isabel Infantes

Imane Khelif não é transgênero, mas intersexo

Imane pertence ao grupo de pessoas nascidas com condições que não se encaixam nas normas médicas tradicionais para corpos do sexo feminino ou masculino. O termo ‘hermafrodita’ foi usado no passado, mas é considerado incorreto e ofensivo. Algumas pessoas intersexo possuem órgãos genitais femininos, mas têm cromossomos XY (determinantes do sexo masculino) e níveis de testosterona compatíveis com corpos masculinos. Esse é o caso de Khelif e também da corredora sul-africana Caster Semenya, que foi impedida de participar das Olimpíadas de Tóquio em 2021.

Na Argélia, país que Khelif representa, a identidade transgênero é proibida e a mudança de gênero ou sexo em documentos de identidade não é permitida, tampouco tratamentos médicos ou hormonais são permitidos para a transição a outro sexo. Uma foto que viralizou nas redes sociais mostra a atleta quando era criança. A imagem foi mostrada por ela em uma entrevista disponível no YouTube.

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Reprodução/ Redes sociais

Quanto à permissão para competir, as normas das federações de cada modalidade definem se atletas intersexo podem participar. A Associação Internacional de Boxe (IBA) possui regras rígidas que impedem atletas com cromossomos XY de competir em eventos femininos. No entanto, Imane Khelif pôde competir porque a IBA foi suspensa pelo COI em 2023.

O Comitê Olímpico argelino criticou os ataques “maliciosos e antiéticos” a Khelif, afirmando que tomou “todas as medidas necessárias para protegê-la”. Já o porta-voz do presidente taiwanês defendeu a chinesa Lin Yu-Ting, que está passando por um caso semelhante ao da argelina. “Sua determinação inspira a nação!”, disse ele em um post no X, antigo Twitter.

Lin Yu‑ting, boxeadora chinesa. Foto: Lampson Yip

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Atletas trans e intersexo nas Olimpíadas

A primeira atleta trans a competir em uma Olimpíada na categoria de gênero com a qual se identifica foi Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, no levantamento de peso, durante os Jogos de Tóquio. No mesmo ano, a seleção feminina de futebol do Canadá contou com Quinn, uma atleta que recebeu autorização para continuar jogando na equipe feminina após se declarar transgênero e não binária, ou seja, não se identifica exclusivamente com os gêneros masculino ou feminino.

Laurel Hubbard levantamento de peso — Foto: Scott Barbour/Getty Images

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Paris

Apenas dois atletas transgênero se classificaram para competir nas Olimpíadas de Paris: Nikki Hiltz, no atletismo, e Quinn, no futebol canadense. Ambos são trans e não binários, o que significa que não se identificam totalmente com os gêneros feminino ou masculino. É importante destacar que uma pessoa trans não é apenas alguém que fez a transição de homem para mulher ou vice-versa. Pessoas não binárias também são consideradas transgênero. Quinn e Nikki foram designados como mulheres ao nascer, mas competem na categoria feminina, apesar de não se identificarem com o gênero feminino.

Quem pode participar?

Consultado pelo g1, o Comitê Olímpico Internacional (COI) esclareceu as regras de participação de atletas transgênero e intersexo nas Olimpíadas de Paris. Em 2021, o COI divulgou uma cartilha com dez princípios ainda em vigor, voltados para “promover a igualdade de gênero e inclusão”. Segundo as diretrizes do COI: Cada federação esportiva é responsável por criar suas regras, que podem variar conforme o esporte;  Os atletas têm o direito de contestar a decisão da Federação Internacional no Tribunal Arbitral do Esporte.

Em entrevista ao g1, Joana Harper, mulher trans, ex-atleta e especialista no assunto, explica que o documento, no qual colaborou, foi baseado em critérios objetivos, como o nível de testosterona no sangue dos atletas. “Mulheres trans precisavam reduzir a testosterona a um valor específico e mantê-la por 12 meses antes de competir. A política foi amplamente adotada por várias federações esportivas”, explica Harper.

Quinn e Nikki Hiltz, atletas trans não binários competem nas Olimpíadas de Paris — Foto: Reprodução

Considerações sobre o critério de testosterona

Embora o nível de testosterona seja um critério adotado por muitas federações, ele não é consenso na comunidade científica. Waleska Vigo, pesquisadora em gênero e esporte olímpico, observa que testes baseados em testosterona podem excluir atletas intersexo. “Algumas pessoas têm testosterona elevada, mas possuem uma mutação no receptor que impede efeitos no corpo. Existem atletas com níveis altos de testosterona, mas sem o efeito esperado”, explica Vigo, doutora pela Escola de Educação Física e Esporte da USP.

Vigo também relembra o caso da ex-jogadora de vôlei Erika Coimbra, reprovada no teste de gênero nas Olimpíadas de Sydney, em 2000, devido à Síndrome de Morris, que eleva os níveis de testosterona. Na ocasião, Erika teve que provar com a certidão de nascimento que era mulher cisgênero.

Entenda os termos:

Cisgênero: Pessoas que se identificam com o gênero designado ao nascer, baseado no sexo biológico.
Intersexo: Pessoas nascidas com características que não se enquadram nas normas médicas para corpos femininos ou masculinos, relacionadas a cromossomos, órgãos genitais, hormônios, entre outros aspectos.
Transgênero: Pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer, baseado no sexo biológico.
Não-binárias: Pessoas que não se identificam completamente com identidades de gênero masculinas ou femininas.

Vantagens de atletas trans

Joana Harper afirma que atletas trans podem ter vantagens sobre atletas cis, mas também enfrentam “desvantagens potenciais” devido à terapia hormonal e transição de gênero. “Em geral, mulheres transexuais são mais altas e fortes que mulheres cis, mesmo com terapia hormonal, mas também têm desvantagens potenciais. Estruturas corporais maiores são sustentadas por massa muscular reduzida e menor capacidade aeróbica, o que pode levar a desvantagens em rapidez, giros e recuperação”, avalia Harper.

Para a pesquisadora, há muitos exemplos no esporte em que determinados grupos de atletas têm vantagens sobre outros. “Permitimos que atletas canhotos compitam contra destros, embora canhotos tenham vantagens em muitos esportes”, diz Harper.

Ex-atleta, Joanna Harper é uma mulher trans e pesquisa atletas transgênero no esporte. — Foto: Arquivo pessoal

Categoria só para atletas trans é possível?

Harper explica por que a ideia de criar uma categoria separada apenas para atletas trans não é prática. “Nos esportes coletivos, isso simplesmente não funcionaria. Se você tivesse um time de futebol transgênero brasileiro, seria necessário reunir 11 jogadores trans do mesmo sexo para competir ao mesmo tempo. Mesmo que isso fosse possível, contra quais outros países eles jogariam?”

Pessoas trans representam cerca de 1% da população mundial. Para Joanna, o cenário ideal de inclusão trans no esporte seria proporcional à sua representação na população. “Se tudo fosse equilibrado, 1% dos atletas na categoria feminina seriam trans. Assim, nos Jogos Olímpicos, veríamos aproximadamente 50 atletas trans competindo.”

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