Atrás de uma parede no mosteiro Sakya, no planalto tibetano, surgiu nas últimas semanas uma história que mistura maravilha, controvérsia e um raro lampejo de história preservada: relatos oficiais e reportagens descrevem uma coleção monumental — cerca de 84 mil textos antigos — guardada no interior do templo fundado em 1073. Seja lenda ou fato novo, a notícia reacendeu uma pergunta antiga: o que permanecem escondidos quando a história é poupada do fogo e do saque?

This Ancient Library in Tibet Holds 84,000 Scriptures

Foto: Reprodução

O acervo descrito pelas agências contém manuscritos em tibetano, sânscrito, chinês e mongol, cobrindo filosofia, rituais budistas, medicina tradicional, poesia, astronomia e história. Entre os objetos relatados, há menções a volumes extraordinários — um exemplar descrito como tendo cerca de 2 metros de comprimento, 1 metro de largura, 80 cm de espessura e 500 kg — que, segundo as fontes, reúne ensinamentos atribuídos a Buda. Tamanha densidade documental exige que se pare e escute: são textos que, se autênticos e bem datados, valem não só por seu conteúdo religioso, mas como fontes primárias de história regional.

A geografia ajudou a salvar o acervo. O clima frio, a altitude superior a 4.000 metros e ambientes secos favorecem a conservação de papel e pergaminho, e é plausível que os manuscritos do Sakya tenham resistido a condições que destruíram bibliotecas em outros lugares. Além disso, registros indicam esforços de preservação e programas de digitalização, que já vinham sendo realizados — um passo essencial para que o material sobreviva ao tempo e se torne acessível a pesquisadores.

Discover the Treasures of Sakya Monastery Library

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Mas nem tudo nessa história é limpamente verificável. Algumas manchetes mais ardentes multiplicaram afirmações extraordinárias — por exemplo, sugerir que os textos teriam 10 mil anos de idade — algo incompatível com o conhecimento aceito sobre a invenção da escrita na Mesopotâmia, há cerca de 5 mil anos. Especialistas lembram que datas tão antigas exigiriam evidências arqueológicas e filológicas robustas, inexistentes até agora. Ou seja: algumas afirmações são exageros que circulam nas redes e em manchetes sensacionalistas, misturando patriotismo cultural, marketing e falta de checagem.

Também é preciso considerar o contexto político e informativo. Grande parte da divulgação inicial veio por agências estatais e veículos próximos às autoridades locais, o que não invalida o achado, mas exige cautela — sobretudo em relação a narrativas que pintam descobertas como “provas” de tempos pré-históricos ou de segredos ocultos por séculos. Pesquisadores independentes e instituições acadêmicas estrangeiras pedem acesso criterioso para autenticação, datação por métodos científicos (p. ex. radiocarbono, análises de tinta e fibras) e publicação acadêmica dos resultados antes de se tirar conclusões dramáticas.

O valor real, imediatista e incontestável, é cultural: manuscritos tibetanos e sânscritos conservados intactos são janelas raras sobre práticas religiosas, medicina tradicional e pensamento filosófico. Mesmo sem titulos sensacionais, a presença de milhares de volumes em bom estado é um feito. A Academia Tibetana de Ciências Sociais e projetos de digitalização já foram citados como envolvidos no trabalho de catalogação e tradução — um processo demorado, que exige paleógrafos, linguistas e conservadores.

The Sakya Library Hidden Behind a Wall Has 84,000 Manuscripts

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Há ainda questões práticas: por que os textos estavam “escondidos” atrás de uma parede? Proteção contra pilhagem, reorganização do mosteiro, simples prática arquitetônica de armazenamento, ou ação deliberada em tempos de conflito são hipóteses viáveis. Historicamente, mosteiros tibetanos guardaram coleções vastas e às vezes pouco acessíveis por motivos de segurança religiosa e política. A sobrevivência de muitos desses manuscritos durante períodos turbulentos — incluindo a Revolução Cultural e outras vicissitudes do século XX — é parte da razão pela qual seu estudo é tão precioso.

Ao final, o episódio funciona como um lembrete com dois lados: por um lado, existe o encanto legítimo de imaginar prateleiras que acumulam séculos de saber; por outro, a necessidade de método científico e transparência antes de transformar achados em teses grandiosas. A expectativa mais saudável é que os 84 mil (ou o número confirmado após contagens e verificações) volumes sejam estudados com rigor, digitalizados e disponibilizados — não como troféus de manchete, mas como fontes que enriquecem a história do Tibete, do budismo e das interações culturais na Ásia.

Seja qual for o desfecho da autenticação, a história do mosteiro Sakya reacende um pacto: conservar é resistir. E, quando os livros sobrevivem, o passado fala mais alto — desde que se ouça com cuidado, técnica e paciência científica.