O mundo dos Bajau é feito de água salgada, redes que balançam ao vento e mergulhos que parecem interromper o tempo. Vivendo entre ilhas e casas flutuantes no Sudeste Asiático, esse povo tradicionalmente passa grande parte do dia no mar, caçando peixe, colhendo moluscos e navegando em canoas estreitas. Ao longo de gerações, o corpo deles foi se moldando a esse ofício: olhos acostumados à luz sobre a água, músculos treinados para remar horas a fio — e, de modo surpreendente, um órgão que tem chamado atenção de cientistas mundo afora: o baço.

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Pesquisas recentes mostraram que, em média, os Bajau carregam um baço maior do que o observado em populações vizinhas — algo em torno de dezenas de porcentos mais volumoso. Esse detalhe tem um efeito prático: durante o mergulho, quando o corpo ativa a chamada “resposta ao mergulho” (freio nos batimentos cardíacos, vasoconstrição periférica), o baço se contrai e libera uma reserva de glóbulos vermelhos oxigenados. É como se o organismo carregasse um tanque extra de oxigênio pronto para ser usado quando os pulmões não podem puxar ar. Em termos simples: mais baço, mais capacidade de suportar períodos sem respirar.
Daí nasceram manchetes espetaculares — “gene mutante permite que nômades do mar fiquem 5 horas por dia submersos” — e com elas uma mistura perigosa de fato, extrapolação e mito. Vamos separar o que é realidade científica do que virou lenda viral.
Primeiro, é verdade: existem diferenças genéticas entre os Bajau e populações que não mergulham. Cientistas identificaram variantes genéticas associadas a vias hormonais e metabólicas que podem influenciar o tamanho do baço e a tolerância ao baixo oxigênio. Uma dessas variantes mostrou relação com reguladores de hormônio tireoidiano, que em testes animais se mostraram capazes de alterar o tamanho do baço. Em laboratório, manipulações nessas vias mudaram, de fato, o órgão em modelos animais — o que dá suporte à hipótese de que a seleção natural, vez por outra, “modelou” o corpo dos Bajau para o mergulho.
Por outro lado, a ideia de que todo Bajau mergulha durante cinco horas todos os dias, sem intervalos, é imprecisa. As horas passadas no mar variam com a estação, a idade, a função social e as condições locais. Muitos mergulhos são curtos, repetidos várias vezes ao dia; outros membros da comunidade passam menos tempo submersos. Em resumo: existem mergulhadores excepcionais, práticas intensas e um estilo de vida aquático, mas transformar isso em uma regra absoluta para todos é exagero.

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Também vale avisar: rotular uma variante genética como “novo gene mutante” soa sensacionalista e incorreto. Tratam-se de variantes — alterações hereditárias que, em determinadas populações e contextos ambientais, acabam sendo selecionadas porque trazem vantagem. Não é “mutação mágica” que transforma humanos em supermergulhadores; é a interação entre genética, cultura, treinamento e ambiente. A adaptação é um mosaico.
Além da curiosidade científica, há aqui implicações práticas e éticas importantes. Entender como certas variantes protegem contra hipóxia (falta de oxigênio) pode abrir caminhos para tratamentos médicos — por exemplo, técnicas para proteger órgãos em cirurgias, ou terapias para pacientes com problemas respiratórios. Mas transformar um achado populacional em terapia implica muitos passos: confirmar mecanismos, testar segurança e só então avaliar aplicações clínicas.
Outro ponto crucial é a própria situação dos Bajau hoje. A vida tradicional está sob pressão: pesca predatória, poluição plástica, regulamentações costeiras e a chegada de bens de consumo mudam hábitos. Jovens que antes mergulhavam passam a buscar trabalhos na cidade; corais e mariscos, base da subsistência, sofrem com a degradação. A ciência não pode ser vista só como “descobridora de superpoderes”: ela também deve apontar responsabilidades — como proteger o modo de vida que permitiu essas adaptações no primeiro lugar.
Finalmente, há uma lição humana nessa história. A ciência que estuda os Bajau encontrou algo notável, mas foi também o respeito à história cultural e à autonomia do povo que transformou o achado em ensino — não em espetáculo. Adaptabilidade humana é impressionante, e as histórias de povos como os Bajau nos lembram que o corpo e a cultura se esculpem mutuamente ao longo de gerações.
Para quem quer um resumo direto para compartilhar: sim, os Bajau apresentam adaptações reais que ajudam no mergulho; sim, a genética contribui; não, não existe um “gene mutante” que torne qualquer pessoa capaz de ficar horas ininterruptas debaixo d’água; e sim, o modo de vida que permitiu essas mudanças está ameaçado e merece ser preservado.