Mehran Karimi Nasseri passou quase duas décadas vivendo num limbo que parece saído de um romance: o saguão do Terminal 1 do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Chegou ali sem documentos válidos e, em vez de continuar viagem ou conseguir abrigo legal, ficou retido na zona internacional — um lugar que não é nem totalmente França nem um país estrangeiro, onde leis, burocracias e falhas de comunicação acabaram por transformá-lo em um habitante permanente do aeroporto.

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A história começou com deslocamentos e perdas de papéis que nunca foram explicados de forma conclusiva. Segundo narrativas que circularam ao longo dos anos, Nasseri havia solicitado asilo e sofrera revezes burocráticos: chegou a apresentar documentos que, por diferentes motivos, não foram reconhecidos pelas autoridades. Outra versão sugere que ele perdeu papéis num carro ou numa estação, o que o deixou sem prova de identidade. A verdade exata desses detalhes permaneceu, desde o início, um emaranhado de contradições — parte dos mitos que cercaram a vida no terminal.
No espaço entre portões, lojas e esteiras de bagagem, Nasseri organizou uma rotina que transformou o aeroporto em lar. Tomava banho em banheiros públicos, lavava roupas na pia e as pendurava sobre malas; fazia refeições em lanchonetes, lia jornais, escrevia longos textos e observava a passagem incessante de passageiros. Havia algo quase poético naquela adaptação: um homem que improvisou um cotidiano onde a vida deveria ser apenas trânsito. Em entrevistas ao longo dos anos, chegou a descrever o lugar com uma certa aceitação — “não é um lugar ruim”, disse em dado momento — mas, por trás da fala, havia solidão, incerteza e dependência da boa vontade de funcionários e viajantes.
A permanência prolongada trouxe repercussões humanas e jurídicas. Autoridades francesas, em diferentes momentos, tentaram mover processos de repatriação, internamento ou encaminhamento social; organizações de assistência social trabalharam para oferecer cuidados e documentação; e a imprensa internacional transformou o caso em símbolo de fragilidade dos sistemas de acolhimento a refugiados e migrantes. Enquanto isso, o homem que vivia entre cafés e esteiras passou a ocupar um lugar ambíguo no imaginário público: tanto figura trágica quanto personagem excêntrica.
O episódio atingiu novo patamar cultural quando a história de Nasseri inspirou o filme “O Terminal”, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Hanks. A obra transfigurou detalhes reais, criando um enredo romântico e humanista que aumentou o interesse global pelo homem do Charles de Gaulle e ao mesmo tempo apagou nuances importantes da sua vida — como as incertezas sobre sua origem, seus reais problemas de saúde mental ou a natureza dos embates burocráticos que o impediram de sair. A relação entre realidade e ficção, nesse caso, alimentou debates sobre audiência, representação e responsabilidade.
Em 2006, após cerca de 18 anos no aeroporto, Nasseri foi hospitalizado — episódios de saúde fragilizada e cuidados médicos foram frequentes a partir daí — e, por um tempo, deixou o terminal. Mais tarde, no entanto, retornou ao mesmo espaço que marcara sua vida por tanto tempo, como se o aeroporto, por todas as suas limitações, tivesse se tornado também o único lugar de pertencimento possível. Ao longo dos anos finais, moradores, trabalhadores e viajantes continuaram a reconhecê-lo como uma presença quase ritual: homem com mala sempre à mão, leitor de jornais, testemunha silenciosa do fluxo humano global.
A trajetória pessoal de Nasseri também expôs questões mais amplas: como os Estados lidam com pessoas sem documentos, como sistemas administrativos podem produzir exclusões duradouras e como a cooperação entre serviços sociais, diplomacias e instituições pode falhar em circunstâncias complexas. O caso trouxe à tona dilemas sobre dignidade, direitos humanos e o papel das nações em aceitar a responsabilidade por indivíduos que atravessam fronteiras e, numa sequência de erros, acabam invisíveis à lei.

Foto: Reprodução/South China Morning Post
Em 2022, Mehran Karimi Nasseri morreu de ataque cardíaco — no mesmo aeroporto que havia sido lar e prisão. A notícia do falecimento confirmou, para muitos, o caráter trágico e simbólico de sua vida: um homem cuja existência pública se desenrolou num ponto de trânsito global, e que voltou a cair no esquecimento logo após sua morte. Restou um legado ambíguo: a lembrança de um homem real com necessidades e histórias próprias, a inspiração para uma obra cinematográfica e uma série de perguntas não resolvidas sobre direitos, procedimentos e empatia institucional.
Mais do que curiosidade biográfica, a vida de Nasseri funciona como um alerta e um espelho. Revela, de forma crua, o poder das fronteiras administrativas sobre destinos humanos. Mostra também como relatos e filmes tendem a simplificar trajetórias complexas, transformando pessoas e seus sofrimentos em símbolos, por vezes sem o cuidado necessário com a precisão dos fatos ou com a conservação da dignidade daqueles retratados. Em última instância, a história de um homem que viveu entre portões e bagagens é um convite para refletir sobre o que significa pertencer — e sobre como sociedades poderiam evitar que vidas inteiras fiquem suspensas entre carimbos e recusas.