Nos últimos dias, uma novela falsa intitulada ‘Pé de Chinesa’ viralizou nas redes sociais, trazendo à tona uma discussão importante sobre racismo recreativo. Embora inicialmente concebida como uma crítica a antigas novelas da TV Globo que retratavam culturas estrangeiras de maneira problemática, como ‘Negócio da China’ e ‘Sol Nascente’, a sátira acabou repetindo estereótipos racistas contra pessoas de origem asiática. Em resposta, um grupo de atores de ascendência asiática se manifestou publicamente para criticar a novela falsa, destacando como o racismo estrutural, disfarçado de humor, reforça preconceitos e discriminações historicamente enraizadas.
Um meme que se tornou problema
A polêmica começou quando um vídeo feito com inteligência artificial simulou a abertura de uma novela fictícia chamada ‘Pé de Chinesa’. A intenção era criticar antigos erros de representatividade em novelas brasileiras, mas o resultado final acabou se tornando, ele próprio, uma reprodução de preconceitos raciais. O título da novela, uma referência ao ‘Pé de Lótus’, prática histórica dolorosa e opressiva imposta a mulheres na China, já sugeria o tom problemático da “brincadeira”. Rapidamente, artistas e influenciadores se envolveram na criação de personagens fictícios com nomes estereotipados e utilizando yellowface, prática onde não-asiáticos interpretam papéis de asiáticos.
Ana Hikari, Anna Akisue, Aya Matsusaki, Bruna Aiiso, Bruna Tukamoto, Carlos Chen, Claudia Okuno, Jacqueline Sato e Tati Takiyama, todos atores e atrizes de ascendência asiática, uniram-se para escrever um manifesto contra o viral. No texto, publicado nas redes sociais, eles argumentam que o racismo presente na novela falsa vai além de uma simples piada inofensiva: “Racismo estrutural não é engraçado”, sentenciam.
O peso do passado e a persistência de estereótipos
Um dos principais problemas apontados pelos atores é o fato de que a “brincadeira” revive estereótipos antigos e dolorosos. A prática do ‘Pé de Lótus’ usada como inspiração para o título da novela, foi uma tradição que mutilava os pés de meninas na China durante a Dinastia Song, e serviu como símbolo de opressão feminina. Utilizar esse termo como título de uma sátira desconsidera a gravidade histórica da prática.
No manifesto, os artistas ressaltam: “As imagens criadas por essa novela Pé de Chinesa trazem diversas camadas que não só reforçam de maneira estereotipada a forma como as pessoas nos enxergam e nos tratam, mas também resgatam problemas históricos e políticos que nossos ancestrais sofreram ao longo da história mundial, e também especificamente brasileira”.
Além disso, a trilha sonora do vídeo e os nomes dos personagens fictícios, como “Xu Lee”, “Tia Ping” e “Guioza Tempurá”, reforçam preconceitos linguísticos e alimentam a confusão entre as culturas chinesa e japonesa, como se todas as pessoas de ascendência asiática fossem iguais. Atores como Ana Hikari, que é descendente de japoneses, foram inseridos na piada como “personagens chineses”, o que demonstra o desconhecimento e a falta de cuidado ao lidar com a diversidade cultural asiática.
O racismo recreativo e suas implicações
A crítica dos atores também foi embasada nos conceitos de racismo recreativo, como definido pelo pós-doutor em Direito Adilson Moreira. Segundo ele, o racismo recreativo é uma prática onde o humor serve como uma ferramenta para perpetuar estereótipos e discriminações, muitas vezes disfarçado de “brincadeira inofensiva”. Ele afirma: “O uso do humor para produzir descontração está amplamente presente na atividade recreativa favorita dos brasileiros, embora as pessoas se recusem a interpretar esses atos como ofensas raciais”.
Esse tipo de humor, que ridiculariza minorias raciais, perpetua a marginalização e impede que esses grupos sejam reconhecidos e respeitados socialmente. É o que os atores de origem asiática tentam evidenciar: o riso gerado por ‘Pé de Chinesa’ não é apenas uma piada, mas uma forma de minimizar e invisibilizar a história e as dores de uma comunidade inteira.
No manifesto, eles destacam a contribuição da escritora Bell Hooks, que em seu livro Olhares Negros – Raça e Representação discute o papel das imagens na manutenção de estruturas de poder: “A natureza profundamente ideológica das imagens determina não só como outras pessoas pensam a nosso respeito, mas como nós pensamos a nosso respeito”, citam os artistas.
A importância da representatividade real
Outro ponto crucial levantado no texto é a importância de uma representatividade genuína e cuidadosa nas produções culturais. A TV Globo, nos últimos anos, tem se esforçado para corrigir erros do passado em suas novelas, como evitar o uso de blackface e escalar atores que realmente pertençam às etnias que estão sendo representadas. No entanto, o caso de ‘Pé de Chinesa’ mostra que ainda há muito a ser discutido e aprimorado em relação à forma como as culturas asiáticas são retratadas na mídia brasileira.
Ao final do manifesto, os artistas fazem um apelo direto: “Não é engraçado quando o racismo recreativo toma uma proporção dessa, quando pessoas racializadas ou uma cultura se tornam piadas, memes e viralizam dessa forma. Se depois de todas essas explicações, você ainda estiver rindo, tenho uma notícia pra você: você está sendo racista”.
Reflexão necessária
A polêmica em torno de ‘Pé de Chinesa’ revela como o humor, quando mal direcionado, pode perpetuar discriminações e fortalecer estereótipos. Em um momento em que a luta contra o racismo e pela representatividade ganha cada vez mais visibilidade, é fundamental refletir sobre as implicações das “brincadeiras” que fazemos e do conteúdo que consumimos. O manifesto dos atores asiáticos é um chamado para repensarmos o humor e a maneira como ele pode impactar a vida de minorias étnicas, cujas histórias e vivências são muitas vezes ignoradas ou distorcidas.
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