Em 2024, é impossível imaginar qualquer país do mundo sem ao menos um reality show em seus principais canais. Em um mundo onde a cultura de compartilhar excessivamente detalhes da vida pessoal ganha cada vez mais espaço, um recente documentário se destaca ao explorar um dos casos mais extremos e bizarros dessa tendência.
“The Contestant” mergulha na história extrema de Tomoaki Hamatsu, mais conhecido pelo apelido Nasubi. Um aspirante a comediante japonês que se viu nu em um quarto, sobrevivendo em apenas de prêmios de concursos de revistas enquanto milhões de pessoas o assistiam, fascinados e horrorizados.
Susunu! Denpa Shōnen
O reality show em questão, Susunu! Denpa Shōnen, traduzido como “Não prossiga! Juventude Louca”, foi um fenômeno cultural no Japão, exibido de 1998 a 2002 na Dippon TV. Seu objetivo principal era submeter subcelebridades ao extremo de sobrevivência. Esse reality sempre contou com uma grande audiência, porém, sua temporada mais famosa foi com Nasubi, que tinha 23 anos na época.
Em 1992, o Susunu! Denpa Shōnen foi criado por Toshio Tsuchiya, que tinha como especialidade era abaixar a cabeça e fazer o que a direção mandava, mas aproveitando o descuido dos homens de cima, ele usou o “faz qualquer coisa, nem precisa ter audiência, é só pra fechar grade”. E assim, criou um programa que iria mudar a forma de se pensar nos limites da TV.
Denpa Shōnen nasceu de anos de frustração do T-Producer, como Tsuchiya era conhecido. Todas as suas mais bizarras ideias saíram da gaveta, direto para a televisão e se tornaram sucesso imediato. O que deu sobrevida ao programa.
Desde o começo, os próprios apresentadores falavam que o programa seria cancelado por ordem jurídica.. Por causa dos vários quadros que desafiavam até mesmo os mais insanos programas da televisão japonesa. Onde já reinavam brincadeiras com comida fervendo e castigos dolorosos.
Todo mundo que se envolvia na produção ia para cada locação com uma certeza: a pior hipótese era perder a vida. No começo, muitos artistas ainda duvidavam, afinal, por pior que fossem os níveis de comédia sádica do Japão, não passavam de encenação televisiva. Era como um telecatch, com dor calculada, movimentos ensaiados, reação interpretada. Mas Denpa Shonen era uma coisa que na época ainda era novo: Um Reality Show.
Como tudo começou: Nasubi
A história começa em 1998, quando Nasubi, pensando estar indo para uma audição, foi recrutado por Toshio Tsuchiya. Nasubi foi levado para um apartamento, instruído a se despir e trancado lá sem praticamente nada além de um fogareiro, uma mesa, canetas, papel para carta, um telefone, um rádio, revistas recentes e uma mesa. Todo o resto ele deveria conseguir de concursos de rádio ou revista, para provar que era possível.
A pilha de revistas vinha acompanhada de vários sorteios, e ele tinha o objetivo de juntar ¥1 milhão (cerca de R$ 17,800 na época). Isso apenas por meio de prêmios de concursos. Os riscos? Sua sobrevivência dependia disso. Seja comida de cachorro ou arroz seco, essa era sua dieta. E se isso não fosse suficiente, levou quase um ano para ganhar papel higiênico.
Ele teve suas partes íntimas preservadas apenas por um ícone animado de berinjela. Inclusive, é uma referência ao apelido de infância de Nasubi, a palavra japonesa significa berinjela. Nasubi ficou os primeiros vinte dias sem comer por não ganhar nada, e chegou a comer comida de cachorro para sobreviver.
Tentativa de impulsionar a carreira
De início, os produtores alegaram a Tomoaki que as gravações não eram transmitidas ao vivo. Acreditando que os episódios eram gravados e editados antes de serem televisionados, Nasubi aceitou participar do programa. Por considerar uma oportunidade única para progredir na carreira. No entanto, os produtores do programa não cumpriram o acordo.
Todo o material gravado, incluindo seus momentos mais íntimos, foram transmitidos ao público. Os espectadores ficaram ao mesmo tempo cativados e horrorizados pelo espetáculo. A crua exposição da resistência humana sob pressão levantou questões éticas, mas ainda assim alcançou audiências de até 15 milhões de espectadores no auge.
A reação do público foi uma mistura de incredulidade e curiosidade mórbida sobre quanto tempo uma pessoa poderia suportar tal isolamento e privação extremos. Durante seus 15 meses de cativeiro, Hamatsu viveu sob vigilância constante, cada momento transmitido para uma audiência atenta. Sua única ligação com o mundo exterior eram os sorteios que mal o mantinham alimentado.
Humilhações
Nasubi foi exibido preenchendo inúmeros formulários de inscrição em sorteios, comemorando com uma dança cada vez que ganhava um prêmio e cuidando de seus negócios diários. Eles lhe deram um diário, que foi publicado durante seu tempo na sala e se tornou um best-seller no Japão.
Ao longo dos meses, Tomoaki passava as tardes escrevendo cartas para serem publicadas, as quais podiam lhe retribuir prêmios. Enquanto isso, passava por diversas humilhações, como entregas falsas de comida, quando entregadores fingiam encomendas de vizinhos eram para Nasubi.
A indignação da população com o reality, cresceu à medida que a realidade do que era entretenimento para alguns era, na verdade, uma experiência profundamente angustiante para o participante. “Eu não queria ficar nu. Eu disse isso a ele um milhão de vezes. Mas ele insistiu. Eu fiz. Depois eu disse a ele que não queria ser transmitido”, afirmou Nasubi posteriormente, revelando a profundidade de seu desconforto e exploração.
Porta aberta
Embora Nasubi pudesse ter dito aos produtores que queria sair a qualquer momento, sua saúde mental se deteriorou a ponto de ele sentir que não conseguia sair. Fisicamente, ele estava perdendo peso e cabelo, tendo dificuldade para dormir e sofrendo de dores e sofrimentos quase constantes. Em “The Contestant”, Nasubi fala sobre como ele frequentemente desejava a morte durante seu tempo na sala.
“A porta não estava trancada, mas eu teria que sair nu e pedir ajuda”, Nasubi contou no podcast “This American Life”. Suas reflexões revelam uma mistura de respeito e ressentimento em relação ao produtor do programa. “Eu me senti honrado por ter sido escolhido. Para mim, ele era como uma pessoa no céu. Eu tinha admiração por ele. Mas isso mudou. Ele se tornou malvado. Meu respeito eventualmente se transformou em raiva”, explicou.
Novo apartamento
O apartamento ficou tão famoso que “fãs” e paparazzis começaram a ir para frente do prédio onde ficava o apartamento onde Tomoaki era mantido em condições subumanas. Por conta disso, os produtores realocaram o comediante e continuaram o programa.
No novo apartamento, cujo endereço não foi divulgado, Tomoaki completou os 1 milhão de ienes dentro de 335 dias. Com o fim do reality, entregaram suas roupas, vendaram seus olhos e o presentearam com uma viajem para comemorar sua vitória.
Mais uma vez
Então, Tomoaki foi levado a Coréia do sul por Tsuchiya para uma refeição comemorativa de churrasco coreano e um dia em um parque de diversões. No fim do dia, no entanto, Nasubi foi vendado pela produção e posto dentro de outro apartamento do mesmo porte. Onde seu sofrimento continuaria.
Agora, retiradas suas roupas mais uma vez, lhe foi dito que precisava arrecadar mais prêmios para pagar sua viagem de volta para o Japão. Enquanto Denpa Shōnen foi editado para fazer parecer que Nasubi concordou imediatamente, na verdade levou várias horas para Tsuchiya convencê-lo a ficar. Em questão de semanas, conseguiu o valor suficiente para sua passagem.
“Na minha vida, aquele ano e três meses foram o fundo do inferno”, disse Nasubi à TIME. “Mas o pior momento foi quando terminei a tarefa no Japão, fui levado para a Coreia, e Tsuchiya me disse para fazer de novo. No show, parecia que eu tinha tirado minhas roupas imediatamente. Mas foi realmente um longo processo para me fazer concordar. Tsuchiya disse que quando ele me pediu para fazer de novo, ele viu a raiva sair de cada poro da minha pele. Era quanto ódio havia dentro de mim naquela época”.
O fim?
Depois de mais três meses, Nasubi atingiu seu objetivo e, ainda nu e inconsciente de sua fama, foi levado à frente de uma plateia de estúdio ao vivo para comemorar o fim de seu tempo no programa. A filmagem mostra Nasubi parecendo completamente chocado e desorientado enquanto a plateia aplaude. Ele ainda acreditava que o programa só seria transmitido pela primeira vez após o fim das gravações. Mesmo assim, ele permaneceu no estúdio e respondeu algumas perguntas.
Durante suas entrevistas no “The Contestant”, Tsuchiya fala de uma forma aparentemente fria e insensível sobre o que fez a Nasubi e parece não estar arrependido de suas ações. Quando perguntado sobre como se sente sobre Tsuchiya hoje, Nasubi disse à TIMEque suas emoções são complicadas. “Ainda tenho ódio dele”, ele diz. “Mas ele concordou em ser entrevistado para este filme e nos ajudou a obter imagens da Nippon TV. Então, isso foi uma espécie de ato de redenção.”
E depois?
Após o reality, o trauma gerou diversos problemas para Tomoaki, incluindo perda de peso excessiva, depressão severa e ansiedade social. Ele não conseguia mais estar em público e permanecer longos períodos vestindo roupas agravavam sua ansiedade. Felizmente, com o passar do tempo, Tomoaki conseguiu se reerguer e superar os traumas do programa. Ele continuou sua carreira como comediante e atuou em diversas peças de teatro e dramas japoneses. Ele mantém o recorde de “maior tempo sobrevivido com prêmios de sorteios”.
Após o terremoto e tsunami de 2011 no Japão, que resultou em um grande acidente nuclear na cidade natal de Nasubi, Fukushima, ele se dedicou aos esforços de resgate e socorro. “Fiquei traumatizado. E as pessoas da minha cidade natal, Fukushima, foram as pessoas que ajudaram a preencher o vazio no meu coração”, disse à TIME.
“Então, quando o terremoto aconteceu, é claro que eu queria ajudar meu povo local. Percebi que as lutas do meu passado poderiam ser úteis em uma situação como essa, o que foi uma surpresa para mim. Cheguei à conclusão de que talvez fosse para isso que tudo isso servia e que esse era meu destino”.
Everest
Nasubi finalmente decidiu escalar o Monte Everest para aumentar a conscientização sobre o desastre. E apesar de seus sentimentos negativos por Tsuchiya, procurou o produtor para ajudar a financiar a viagem. “Não tive contato com ele por mais de 10 anos e, durante esse tempo, ele foi um símbolo de ódio para mim, alguém que eu realmente desprezava”, disse.
“Mas quando decidi escalar o Everest, entrei em contato com ele pela primeira vez e ele disse: ‘Eu faria qualquer coisa para ajudar você’ e se desculpou por todas as coisas horríveis pelas quais ele me fez passar”.
Após 3 tentativas frustradas em 2013, 2014 e 2014, Nasubi conseguiu chegar ao topo do Everest em 2016. Hoje, seu compromisso em ajudar os outros continua a guiar sua vida.
“Vinte e cinco anos se passaram, então eu mudei e as pessoas ao meu redor também mudaram. Percebi que não posso mudar o passado, mas mudando a forma como penso sobre quem sou hoje, sempre posso mudar o futuro”, diz ele. “Quando você coloca energia em outras pessoas em vez de apenas focar em si mesmo, você se torna mais forte do que jamais poderia imaginar”.
Nasubi no Monte Everest – Foto: Reprodução